Desastre em Brumadinho: "É fundamental ter uma visão sistêmica e multidisciplinar para prevenir novas crises"

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Publicação : 04 DE FEVEREIRO DE 2019

Autor(es) : Flávia Navarro da Silva Lobato

Desastre em Brumadinho: Do ponto de vista do conhecimento, queremos reunir pesquisadores que já publicaram sobre o desastre da Samarco e encarar as questões de uma forma multidisciplinar. O desafio é pensar na regulação e na governança dos riscos de barragens com uma coordenação multi e intersetorial, considerando o diálogo com empresas, governos, trabalhadores, comunidades e a sociedade como um todo.

Por Flávia Lobato (Campus Virtual Fiocruz) | Foto: Luis Pimenta/Prefeitura de Nova Friburgo

O Brasil já contabiliza 134 mortos, 120 deles identificados, e 199 desaparecidos, em Brumadinho (MG), cidade que foi atingida pelo rompimento da barragem Mina do Córrego do Feijão, sob responsabilidade da empresa Vale. Nesta terça-feira (5/2), a Fiocruz apresenta um estudo sobre os impactos imediatos de mais este desastre no Estado. Um dos palestrantes do evento é o pesquisador Carlos Machado*. Ele coordena o Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e é integrante da Estratégia Internacional de Redução de Riscos de Desastres da ONU (STAG-UNISDR).

Em entrevista ao Campus Virtual Fiocruz, o pesquisador trata de questões que tocam os diversos campos do conhecimento em que a instituição atua: saúde e o papel do SUS; educação e formação de recursos humanos; comunicação, informação e produção científica; meio ambiente e modelo de desenvolvimento; políticas públicas e financiamento; controle e participação social. Carlos destaca que é fundamental ter uma visão sistêmica dos desastres para minimizar riscos e agir com mais eficiência. “Do ponto de vista do conhecimento, queremos reunir pesquisadores que já publicaram sobre o desastre da Samarco e encarar as questões de uma forma multidisciplinar. O desafio é pensar na regulação e na governança dos riscos de barragens com uma coordenação multi e intersetorial, considerando o diálogo com empresas, governos, trabalhadores, comunidades e a sociedade como um todo”. Leia a entrevista completa, a seguir:

Flávia Lobato (CVF): Por favor comente a extensão dos danos relacionados à saúde neste desastre em Brumadinho.

Carlos Machado: Antes de falar sobre este novo desastre provocado pela Vale, faço uma distinção importante. Não se deve dizer que os desastres são de Mariana e de Brumadinho. São desastres provocados pela Samarco e pela Vale nestes municípios, respectivamente. Ou seja, temos que nos referir e responsabilizar os causadores de riscos.

Voltando à Mariana, aquele foi o maior desastre mundial em termos de extensão territorial, desde a década de 1960, com um depósito de uma grande quantidade de rejeitos. Houve um grande impacto nas vilas, tanto em Mariana e, principalmente, Barra Longa. A população deste município vizinho, de que pouco se fala, tem cerca de 5 mil habitantes, e foi muito afetada pela lama que contornou o rio.

Estes eventos nos trazem elementos para pensar os vários danos à saúde que podem ocorrer também em Brumadinho. Em Mariana, a grande quantidade de lama, rejeitos e metais trouxe diversos problemas: impactos nos leitos dos rios; aumento de doenças respiratórias e de sinais e sintomas relacionadas ao consumo da água contaminada (incluindo a de carros-pipa, que nem sempre estão adequadas ao consumo humano); um surto imenso de dengue (já que há uma grande retirada de terra por pessoas que vieram de fora e carregavam o vírus, associado à proliferação de vetores que transmitem doenças).

Um dos principais impactos é a atenção à saúde mental das pessoas, que precisam de todo um acompanhamento psicossocial. Nestas situações, a população convive com a insegurança gerada pelo temor de novos rompimentos, alterações na qualidade do sono etc. Além disso, uma questão observada em outras situações e que queremos avançar – a gente acompanha, por exemplo, estudos de caso da boate Kiss –, diz respeito à sensação de impunidade e injustiça que agrava o quadro de saúde dos sobreviventes e dos familiares.

Há também mudanças no meio ambiente e impactos ecológicos. Ainda não temos informações para falar dos metais pesados presentes na lama do desastre que a Vale causou em Brumadinho. Em Mariana, a lama remobilizou metais pesados que estavam no Rio Doce, provavelmente de contaminações anteriores, trazendo outros metais à tona, como ferro e manganês.

Destaco que estes eventos trazem impactos que se conectam e são muito complexos, exigindo uma avaliação mais sistêmica. E isso toca diretamente na questão da produção científica.

Flávia Lobato (CVF): Neste sentido, como estudos de casos anteriores e pesquisas podem contribuir para a análise de novos desastres?

Carlos Machado: Chegamos a levantar a produção científica sobre o desastre provocado pela Samarco, para poder organizar uma oficina junto com a Secretaria Estadual de Saúde de MG e a Fiocruz Minas, a fim de trazer diferentes estudos, olhando de uma forma mais ampla para desastres como o que aconteceu em Brumadinho – que já é o maior desastre em barragens de mineração com vítimas fatais imediatas desde 1960 no mundo.

Este é também é o maior acidente de trabalho no Brasil. No Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) temos trabalhado – particularmente eu, Marcelo Firpo e Jorge Machado –, com a ideia de acidentes ampliados. Estes dois desastres recentes são, primariamente, acidentes de trabalho com grandes impactos ambientais e sobre a população.

Flávia Lobato (CVF): Refletindo sobre os vários campos do conhecimento, como você avalia o diálogo com as comunidades, a transparência das informações e a comunicação dos riscos neste novo caso?

Carlos Machado: Por conta do desastre ocasionado pela Samarco, a Vale foi obrigada a instalar sistemas de alerta e alarme em várias das suas barragens. Eles fizeram questionários e colocaram sirenes, mas não tomaram outras medidas necessárias. A sirene é parte de um sistema, mas exige também: informações para a população, treinamentos através de simulados, uma relação mais próxima com a comunidade. Isso não aconteceu. Assim, há uma proliferação de fake news (notícias falsas), que aumentam a sensação de insegurança e impactos psicossociais – o que afeta diretamente as populações locais e de lugares em todo o Brasil, que vivem próximas a barragens (de mineração, hidrelétricas ou qualquer outra), independentemente dos níveis de segurança de cada área. E mais: aprendemos que os critérios sobre níveis de segurança não querem dizer muito, porque as barragens da Samarco e da Vale eram classificadas como de baixo nível de risco.


Flávia Lobato (CVF): E temos visto que estes critérios são pouco transparentes e que há um grande conflito de interesses na determinação destes níveis de risco.

Carlos Machado: Exatamente. Desde a década de 1990, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, temos assistido a autorregulação dos riscos pelas indústrias. A ISO 9000 e a ISO 14000 se situam neste contexto, o que contribui para a desestruturação dos órgãos ambientais. E isso se manteve ao longo dos anos, em outros governos. Minas Gerais, até recentemente, era governada pelo PT. É preciso enfrentar essa promiscuidade política do financiamentos de campanhas pelas mineradoras, quando deputados, senadores e governadores defendem interesses das empresas e não a proteção de vida e da saúde da população.


Flávia Lobato (CVF): Diante da crise, o que fazer?

Carlos Machado: Temos que reivindicar a adoção de algumas medidas para combater os riscos atuais e futuros...

  1. Há em torno de 24 mil barragens no país para diversos usos. Cerca de 660 são barragens de mineração espalhadas por 19 estados e 160 municípios. Focando só nas de mineração, a proposta é uma “moratória”: não se pode mais construir barragens deste tipo com a tecnologia de alteamento, que é mais barata para as empresas, mas é obsoleta e de maior risco. Este modelo deve ser interrompido, até que se avance numa regulamentação mais específica com maior participação da sociedade.

  1. Realizar uma ampla inspeção e auditorias em todas as outras barragens que estejam ou não em operação, com a participação dos trabalhadores, das comunidades e dos órgãos como o Ministério Público Estadual e Federal.

  1. Estruturar, imediatamente, capacidades de preparação e resposta para emergências, com sistemas e planos de alerta e alarme que envolvam a participação efetiva de trabalhadores e comunidades. Lembrando que muitas barragens estão em municípios pequenos, que nem sempre têm uma Defesa Civil bem estruturada, mas contam com uma Secretaria de Saúde. Isso aponta para o próximo ponto.

  1. No que se refere à responsabilidade do setor de saúde, defendemos que todas as secretarias municipais e estaduais tenham um plano de preparação e resposta a estes eventos (sejam relacionados a mineração ou outros, como secas, inundações, deslizamentos etc.). Sabemos que os desastres vão acontecer, a questão é como organizar a resposta. Publicamos recentemente o Guia de preparação e respostas do setor saúde aos desastres, um produto do SUS. Trabalhamos colaborativamente e na perspectiva multiriscos, ou seja, há uma base comum de recursos no SUS para responder aos desastres, o que varia são os tipos de evento e como se associam. É necessário envolver os órgãos de saúde, para que secretarias sejam impulsionadoras de uma cultura de prevenção, para que atuem de uma forma mais prospectiva e ativa e menos reativa. Tudo isso para garantir mais segurança às populações, oferecer melhores condições de vida, recuperando a saúde das pessoas e dos ecossistemas que sofreram com os desastres.

Flávia Lobato (CVF): E como você avalia a atuação dos órgãos do SUS diante da emergência em Brumadinho? Já se pode comparar com o desastre causado pela Samarco?

Carlos Machado: São situações diferentes. Em Brumadinho, o SUS deu uma pronta resposta a essa situação de urgência e emergência e está atuando de uma forma bem positiva. Os agentes de saúde estão lá desde as primeiras horas, estão estruturando as equipes de Saúde da Família para atender e cuidar das pessoas afetadas, dos desabrigados e suas famílias. Brumadinho tem uma boa estrutura em termos de saúde.

No caso da Samarco, o primeiro atendimento do SUS foi muito bom. Mas houve conflitos com a Vale em relação ao cadastro das vítimas, que ficou com a Fundação Renova. Definiram quem foi afetado ou não de modo a favorecer a mineradora e postergaram o atendimento às vítimas, sua reparação e a recuperação daquela área. Em Barra Longa, que é um município pequeno, não houve capacidade para dar uma resposta rápida, levando a situação dramática.

Flávia Lobato (CVF): Por falar em curto prazo, o que fica de aprendizado depois de destas duas tragédias?

Carlos Machado: Tenho certeza de que tanto o Ministério da Saúde quanto a Secretaria Estadual de Saúde podem utilizar o aprendizado com o desastre da Samarco em relação aos riscos atuais e futuros, de modo a estruturar o atendimento imediato e da vigilância para detectar e responder aos problemas de saúde que comentei no início da nossa conversa.

Flávia Lobato (CVF): A saúde é uma das muitas áreas mobilizadas num problema que envolve diversos agentes públicos. Mas ainda é preciso mais articulação, certo?

Carlos Machado: Esta é a questão central: ter uma percepção mais sistêmica e abrangente do desastre. Do ponto de vista do conhecimento, o desafio é reunir os diversos pesquisadores que já publicaram sobre o desastre da Samarco. Temos um levantamento e queremos promover uma Oficina com especialistas que tenham produzido artigos, dissertações e teses para encarar as questões de uma forma multidisciplinar. Isso nos obriga a pensar na regulação e na governança dos riscos de barragens, com uma coordenação multi e intersetorial, e no diálogo com empresas, governos, trabalhadores, comunidades e a sociedade como um todo.

Flávia Lobato (CVF): Fala-se muito que a legislação brasileira já é bastante rigorosa e que o problema é a fiscalização.

Carlos Machado: As agências de mineração e os órgãos ambientais não estão estruturados para garantir o cumprimento da lei. Faltam técnicos, recursos humanos, financeiros e equipamentos suficientes. A legislação não existe num vácuo! E isso nos coloca diante da questão do teto de gastos do governo. Como a gente dota os órgãos do governo federal de todos estes recursos para dar conta da quantidade de riscos que a gente tem, se os recursos necessários não estão disponíveis?

Flávia Lobato (CVF): E também como garantir que os recursos públicos, incluindo as indenizações pagas pelas empresas, sejam utilizados para reverter danos ambientais e na implementação e execução de políticas públicas para prevenção de riscos...

Carlos Machado: Soube que as agências reguladoras recebem um percentual da verba das mineradoras, só que este dinheiro não é revertido para o órgão diretamente, indo para uma conta geral do governo. No final, isso se traduz em contingenciamento e impede a contratação e qualificação de pessoal, a compra de equipamentos e assim por diante. Por isso, destaco a lógica sistêmica.

Flávia Lobato (CVF): Depois que a crise sai do foco, é preciso manter a vigilância e ações mais estruturantes. Como agir para evitar que estas tragédias se repitam?

Carlos Machado: Não conseguimos aprender do ponto de vista institucional entre um desastre e outro. O acordo com a Fundação Renova — criada para responder as ações de recuperação, reconstrução e mitigação dos danos pela Vale — é um exemplo disso. Essa Fundação é controlada pela mineradora, e é fruto de um acordo vergonhoso do governo federal à época e de órgãos estaduais, que reduziram a indenização solicitada pelo Ministério Público Federal de R$ 155 bilhões para R$ 20 bilhões.

Não tem outro caminho, senão a atuação política. O sistema de controle social é opaco e com pouca participação da sociedade. No ano passado, vários deputados estaduais rejeitaram projetos de leis mais avançadas. Infelizmente, a sociedade funciona na lógica de sustos. Excluindo as barragens de Mariana e Brumadinho são 658 barragens, vamos esperar romper mais uma para agir? O problema é contínuo e sistêmico, não dá para atuar de forma pontual. E o tempo favorece os inescrupulosos que não têm interesse em defender a população. A verdade é que, por trás de tudo, há uma "lógica" de que o desenvolvimento econômico se dá pela realização de empreendimentos lucrativos. Mas os ganhos são para quem? No fim, essa conta se traduz em custos humanos e ambientais, que são repassados para a própria população.

Quer saber mais? Acesse o especial da Agência Fiocruz de Notícias sobre o desastre.

* Carlos Machado é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (1989), tem mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1996) e pós-doutorado pelo Programa de Ciências Ambientais da Universidade de São Paulo (2007-2008). Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), desenvolve com atividades de pesquisa e ensino sobre temas relacionados à saúde ambiental e aos desastres. Atualmente coordena o Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde. Integrante do Comitê Técnico Assessor de Vigilância e Resposta às Emergências em Saúde Pública (CTA-ESP), SVS/MS e do Grupo de Aconselhamento Técnico e Científico da Estratégia Internacional de Redução de Riscos de Desastres da ONU (STAG-UNISDR), editor científico Editora Fiocruz.

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