Home Política afirmativa amplia oportunidades de formação de indígenas em programa de pós-graduação da Fiocruz na área de vigilância em saúde
Voltar
Publicado em 19/04/2024
  • Destaques
  • Portal Fiocruz

Política afirmativa amplia oportunidades de formação de indígenas em programa de pós-graduação da Fiocruz na área de vigilância em saúde

Autor(a): 
Bruna Cruz (Ascom Programa VigiFronteiras/Brasil - Fiocruz)

Desde 2021, a instituição reserva vagas para candidatos que se declararem pessoas com deficiência (PcD), negros (pretos e pardos) e indígenas, permitindo o acesso à qualificação em alto nível e produção de conhecimento com representatividade

A enfermeira colombiana Yuri Consuelo Rodrígues Rodrígues nasceu em Mitú, cidade do estado de Vaupés, que faz fronteira com o Amazonas, no Brasil. É a segunda filha de uma mulher indígena analfabeta que se desdobrou atuando em casas de família para pagar os estudos dos filhos. Em 2005, ela concluiu o ensino médio. Foi bolsista na Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá, onde realizou sua graduação de 2006 a 2010. Recentemente, Yuri foi a primeira indígena a concluir o curso de mestrado do Programa Educacional em Vigilância em Saúde nas Fronteiras (VigiFronteiras-Brasil), oferecido pela Fiocruz, apresentando a dissertação “Vigilancia Comunitaria en Salud y Resistencia Decolonial en la Comunidad Indígena Yararaca de Vaupés-Colombia Frontera con Brasil”.

A produção científica de Yuri irá se somar, em breve, aos conhecimentos produzidos por Hamyla Elizabeth da Silva Trindade e Luiz Carlos Ferreira Penha, doutorandos do mesmo programa. Juntos, eles formam o trio de alunos indígenas selecionados por meio da política institucional de ações afirmativas e inclusivas da Fundação Oswaldo Cruz. Em 20 de setembro de 2021, em um movimento pioneiro na pós-graduação, a Fundação instituiu a Portaria 491, que orienta a reserva de 30% da totalidade de suas vagas nos processos seletivos lato e stricto sensu para candidatos que se declararem pessoas com deficiência (PcD), negros (pretos e pardos) e indígenas. Um passo importante rumo à equidade e fortalecimento da saúde dos povos originários brasileiros.

A política de reserva de vagas para indígenas tem como objetivo promover a inclusão e a representatividade na saúde pública brasileira, especialmente em áreas como a saúde coletiva, a vigilância em saúde e a saúde indígena. “Acho que é uma ação positiva e que é preciso ter esse percentual e representatividade acadêmica que nos permite continuar com as nossas lutas e reivindicações, ajudar-nos mutuamente no território e contribuir para a melhoria da saúde local e fronteiriça”, declarou Yuri.

A ação afirmativa tem o potencial de promover a inclusão, a representatividade e a melhoria da qualidade dos serviços de saúde, contribuindo para a redução das desigualdades e o fortalecimento da saúde indígena no país. “O impacto dessa política é significativo, pois permite que os indígenas tenham acesso a oportunidades de formação, o que contribui para a diversificação e a qualificação dos profissionais que trabalham com saúde indígena. A presença de profissionais indígenas nesses setores pode facilitar a comunicação e a compreensão das necessidades e demandas específicas das comunidades indígenas, promovendo uma abordagem mais adequada e culturalmente sensível”, explicou Andréa Sobral, coordenadora Acadêmica do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz.

É exatamente o que pensa a enfermeira Hamyla Trindade, mestre pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA) e doutoranda do VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz. Para ela, é fundamental poder contar com a política afirmativa, uma vez que os indígenas ainda sofrem as consequências históricas de séculos de injustiça social. “É um meio que o próprio Estado tem de reparar as injustiças sofridas pelos Povos Indígenas, seja pela dificuldade de uma boa educação, de acesso aos serviços públicos ou pela violação dos seus direitos que ainda ocorrem diariamente. Enquanto aluna do doutorado, também quero apresentar essas iniquidades que vivemos e lutar a favor dos meus que ainda se encontram no território, para que eles possam ter a mesma oportunidade que eu tive de fazer uma graduação, um curso de mestrado e doutorado. A educação ofertada em uma comunidade indígena, se comparada à de uma escola numa capital, é diferente. Então é preciso que o acesso dessas pessoas à educação e qualificação em outros níveis também seja diferenciada”, declarou.

Segundo Luiz Penha, biólogo, doutorando do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz e também egresso PPGVIDA da Fiocruz Amazônia, o incentivo à participação de indígenas nos programas de pós-graduação também contribui para a ampliação do conhecimento institucional relativo às complexidades e especificidades da saúde indígena. “Com a nossa participação e a política afirmativa, a instituição consegue ampliar a visão e buscar compreender temáticas sob o olhar do indígena, do olhar do negro, no olhar do quilombola, da diversidade que há. Todos ganham. É importante que os programas tenham esse tipo de diversidade para contribuir para a construção de políticas públicas de atenção à saúde específicas", comentou.

Com a qualificação em nível de pós-graduação, os profissionais indígenas podem atuar como mediadores entre as comunidades e os serviços de saúde, facilitando o diálogo e a construção de políticas e práticas mais adequadas às necessidades locais. Essa participação pode contribuir para a redução das desigualdades de acesso e qualidade dos serviços de saúde enfrentados por essas populações, especialmente os não aldeados. A formação em alto nível também os capacita para serem formadores de novos profissionais, assim como para atuar na produção de conhecimentos científicos com representatividade.

Na vigilância em saúde, foco do Programa VigiFronteiras-Brasil, a presença de profissionais indígenas vai fortalecer a capacidade de monitoramento e controle de doenças e agravos específicos das populações indígenas, como malária, tuberculose, doenças respiratórias e outras enfermidades endêmicas. Essa participação pode contribuir, ainda, para uma melhor organização do sistema de atenção à saúde da população indígena brasileira, com implementação de estratégias de prevenção mais efetivas que levem em consideração as particularidades culturais, sociais e ambientais de cada nação indígena, além de fortalecer a autonomia e a autogestão das comunidades indígenas na gestão e promover a valorização dos conhecimentos tradicionais e a interculturalidade na atenção à saúde.

O Programa VigiFronteiras-Brasil é uma iniciativa da Fiocruz em parceria com a Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério das Saúde e com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

MESTRADO INÉDITO

Em agosto de 2023, a Fiocruz Amazônia, que participa do consórcio para oferta do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz com o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA), lançou o primeiro curso de mestrado em Saúde Coletiva voltado exclusivamente para formação de profissionais, docentes e pesquisadores indígenas do Alto Solimões, como forma de diminuir a desigualdade nas regiões mais remotas do país. Foram 52 candidatos de diferentes etnias e municípios da região que se submeteram ao processo seletivo do curso, resultando no preenchimento das 15 vagas oferecidas para sanitaristas indígenas. As vagas foram preenchidas por tikunas, kambebas, kaikanas, marubos, kokamas e kanamaris, dos municipios de Tabatinga, Benjamim Constant, Atalaia do Norte, Amaturá e Santo Antônio do Içá. A iniciativa da Fiocruz Amazônia conta com apoio da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de projeto aprovado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Confira, a seguir, entrevistas com Yuri Rodrígues, Hamyla Trindade e Luiz Penha. Eles compartilharam conosco um pouco de trajetórias profissionais e acadêmicas.

Fiocruz oferece opções de cursos livres a distância com foco na saúde indígena

Campus Virtual Fiocruz (CVF) é uma rede de conhecimento e aprendizagem voltada à educação em saúde. Além de reunir informações sobre os 50 programas de pós-graduação stricto sensu, cursos de especialização, programas de residência e educação de nível técnica oferecidos pela Fiocruz, o CVF também oferece cursos próprios – remotos e presenciais – e de várias unidades da instituição sobre temas diversos, incluindo a saúde indígena. Confira:

ENFRENTAMENTO DA COVID-19 NO CONTEXTO DOS POVOS INDÍGENAS - Acesse aqui e confira!

COVID-19 E A ATENÇÃO À GESTANTE EM COMUNIDADES INDÍGENAS E TRADICIONAIS - Acesse aqui e confira!

PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL EM SAÚDE INDÍGENA - Acesse aqui e confira!

ENTREVISTA

Formato do VigiFronteiras-Brasil permitiu participação de indígena da Amazônia Colombiana

A enfermeira colombiana Yuri Rodrígues foi a primeira indígena do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz a concluir o curso. Nascida em Mitú, um dos municípios do estado de Vaupés na Amazônia Colombiana, que faz fronteira com o Brasil, tem 35 anos e é indígena do povo Cubeo. O seu trabalho do mestrado foi focado na comunidade indígena Yararaca, de Vaupés, na Colômbia. Entrevistamos a ex-aluna para saber um pouco da sua experiência com a qualificação e os desafios que precisou superar para concluí-la, como a falta de infraestrutura para assistir as aulas e a adaptação ao idioma.

- ¿Dónde vives actualmente y dónde trabaja o trabajó?

Yuri Rodrígues - Actualmente vivo en mi tierra natal, en Mitú. En mi amado terruño me he desempeñado en apoyar, o en algunos casos en la coordinación de diferentes programas de salud pública tanto de la secretaria de salud municipal como departamental, en programas como: vida saludable y condiciones no transmisibles, en el Programa Ampliado de Inmunizaciones, en el Plan de Intervenciones Colectivas y en Vigilancia Basada en Comunidad.

Mi función en los diferentes programas en los que me han contratado ha sido la de liderar localmente la implementación de las políticas, programas o estrategias definidas por el Ministerio de salud y protección Social de Colombia.

- ¿Cómo se enteró del proceso de selección del programa y por qué decidiste hacer tu maestría?

YR - Fue a través de un gran amigo (William Iván López Cárdenas), quien también realizó su maestría en la Fiocruz en Río de Janeiro, y fue quien me compartió el video de la convocatoria, recuerdo que fue en febrero de 2021. Mi pregrado es en enfermería y lo desarrolle con la Universidad Nacional de Colombia Sede Bogotá.

Por el poder de convencimiento de mi amigo que me envío la convocatoria; por ser una maestría gratuita; por ser semipresencial y por la bondad que tiene estudiar, la de ampliar el pensamiento, el conocimiento y nuevas formas de reproducir el cuidado de la vida en lugares vulnerabilizados por el mismo estado.

-  ¿Puedes describir tu carrera académica? ¿A qué edad empezaste a estudiar y a qué edad empezaste la carrera?

YR - Iniciaré por contar que soy la segunda hija de una mujer indígena analfabeta, por las pocas oportunidades que tuvo, sin embargo mi madre realizó todos los esfuerzos que estuvieron a su alcance para que estudiáramos, inclusive salirse de su comunidad en el caño Cuduyarí para trabajar en casas de familia en el casco urbano y poder pagar nuestros estudios. Inicié mi vida académica a los 5 años de edad en la Escuela Inayá, que luego paso a ser colegio, y allí terminé el bachillerato a los 17 años de edad en el año 2005.

Por mi madrina pude presentarme a la convocatoria de admisión a la Universidad Nacional de Colombia Sede Bogotá, donde inicié mi pregrado en enfermería en el año 2006 hasta el 2010, por ser indígena estudie con beca para el sostenimiento, mi trabajo de grado fue en la modalidad pasantía, la cual desarrollé en la Universidad Nacional Autónoma de México, durante el primer semestre del año 2010. En el año 2021, supe de la convocatoria del Programa Vigifronteiras y tuve la oportunidad de presentarme y ser admitida, e iniciar clases en noviembre de ese mismo año.

- ¿Cómo te ayudará la participación en el curso en tu vida profesional? ¿Cuáles son tus expectativas?

YR - Los aportes y aprendizajes de la maestría en mi vida son incalculables. En lo que respecta a la vida profesional, creería que puedo aportar en el desarrollo de investigaciones de salud de tipo social y étnicos acá en el territorio, y continuar trabajando por la dignificación de la vida y de la salud del indígena de la selva amazónica y fronteriza con Brasil.

- ¿Qué importancia, en su opinión, tienen programas como VigiFronteiras-Brasil para la vigilancia sanitaria en las fronteras?

YR - VigiFronteiras es un programa muy importante para territorios fronterizos y vulnerabilizados como el Vaupés, al ser de las pocas o la única oportunidad que tienen los profesionales tanto locales como foráneos de formarse en posgraduación en salud de manera gratuita y con gran calidad humana, académica y científica. VigiFronteiras ha sido un programa muy generoso con sus países vecinos y muy estratégico al fortalecer la vigilancia fronteriza como una necesidad apremiante y actual reto que enfrentan los países.

- ¿Cuál es su opinión sobre los cursos que reservan plazas específicas para los pueblos indígenas? ¿Qué impacto tiene esto en la vida de los indígenas y, en este caso, en la Salud Pública (brasileña y colombiana)?

Pienso que es una acción afirmativa con los pueblos indígenas y que es necesario contar con este porcentaje y representatividad académica, sin embargo podría ser mayor, pues tenemos derecho a formarnos como cualquier otro ciudadano del mundo. El impacto es que nos permite seguir con nuestras luchas y reivindicaciones, ayudarnos en territorio y aportar en mejorar la salud local y de frontera.

- ¿Hay muchas personas de su etnia con la misma formación académica que usted?

En Vaupés pocos logramos formarnos como profesionales debido a que las Universidades se encuentran por fuera y en ciudades grandes, y eso implica altos costos económicos, que pocas familias con grandes esfuerzos lo logran, además la educación superior no es gratuita en su totalidad, entonces estudiar por fuera implica gastos de desplazamientos aéreos ( un solo trayecto puede estar costando alrededor de 500 reales), gastos de hospedaje y manutención, así como gastos de la universidad: pago del semestre acadêmico, fotocopias, compra de libros y elementos que solicita la misma carrera. En todo el departamento contamos con alrededor de 10 indígenas enfermeros.

- ¿Qué le diría a otros candidatos indígenas que deseen realizar un curso como el que ofrece el programa?

Que se presenten, que es una oportunidad única y muy buena, que están en la capacidad de desarrollar y concluir estudios de posgraduación con dedicación y disciplina, que soy un testimonio y que los voy apoyar en la medida de mis posibilidades en las etapas de postulación y en el desarrollo de la maestría, que la forma en que concibe y se vive la vida va a transformarse de manera positiva.

ENTREVISTA

Ações afirmativas: um caminho para a justiça social

A enfermeira Hamyla Trindade, mestre pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA), da Fiocruz Amazônia, nasceu e estudou até os 17 anos no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira com a Venezuela e a Colômbia, considerado um dos município mais indígenas do Brasil. Doutoranda do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz e colaboradora da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, ela conta como descobriu o processo seletivo para o doutorado e enfatiza que as ações afirmativas são fundamentais para reparar as injustiças sofridas pelos povos indígenas e oferecer oportunidades de acesso à educação de qualidade.

Como ficou sabendo do processo seletivo do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz?

Hamyla Trindade - Eu já estava tentando ingressar no doutorado. Por ser egressa do mestrado da Fiocruz Amazônia, recebemos comunicados sobre editais em aberto. Também tenho o hábito de olhar o site da Fiocruz em busca de informações. Assim eu vi o edital do programa e a oportunidade de me inscrever. O edital também trazia vagas por cota. Vi que haveria mais facilidade de acessar o doutorado pelas duas vagas que estavam sendo ofertadas para indígenas. Não pude perder a oportunidade.

O que achou de o processo seletivo ter um quantitativo de vagas para destinada a pessoas de origem indígena?

HT - É fundamental ter vagas afirmativas, uma vez que os indígenas ainda sofrem as consequências da histórica injustiça social. É um meio que o próprio Estado tem de reparar, seja pela dificuldade de uma boa educação, de acesso aos serviços públicos ou pela violação dos seus direitos que ocorre diariamente. Eu não posso dizer que um indígena tem a mesma capacidade de acesso a uma universidade do que uma pessoa que estudou a vida inteira em um colégio de boa qualidade.

O processo de ingresso em um curso superior ou numa pós-graduação não é diferente para o indígena e para o não indígena. Se eu vou disputar com alguém que teve um melhor ensino durante a vida, com certeza eu vou ficar para trás porque, com o ensino da população indígena, a depender de onde se vive e quais condições de acesso a políticas públicas de educação, não é possível ter o mesmo acesso à universidade como alguém que teve o acesso a um ensino melhor durante a sua vida inteira. Então eu preciso que o acesso dessas pessoas seja diferenciado. Considero que as cotas são fundamentais. Elas não diminuem a nossa vulnerabilidade e nem a justiça social será feita, mas ela dá a oportunidade para que a gente consiga ter um mínimo de acesso a esses outros meios e níveis de educação e qualificação.

- Você pode nos contar um pouco sobre a sua trajetória e relação com a sua comunidade?

HT - A minha trajetória profissional não foi por acaso. A minha mãe é técnica de enfermagem. Pelo fato dela trabalhar com a saúde – ela também é indígena assim como meu pai, ambos da etnia Baré, do Alto Rio Negro - fomos orientados a querer nos formar na área. Quando eu terminei o ensino médio aos 17 anos, em São Gabriel da Cachoeira, minha mãe viu uma oportunidade de a gente estudar mais para melhorarmos de vida. Fui para Manaus com 18 anos, para fazer cursinho, uma vez que eu não consegui passar no primeiro vestibular devido ao ensino, no município, ter muitas diferenças em relação à capital.

Eu fiz cursinho um ano e meio e, aos 19 anos, eu consegui passar com vaga de cota na Universidade do Estado do Amazonas. Eu comecei a minha graduação em Enfermagem. Foram cinco anos difíceis. Foi um processo difícil e disputado. Eu me formei em 2012 e voltei para São José da Cachoeira. Fiquei trabalhando no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) com povos indígenas até 2016, quando eu senti a necessidade e vi a oportunidade de continuar me qualificando profissionalmente para que a gente pudesse melhorar o serviço de saúde na minha região.

Em 2016, fui aprovada na seleção do PPGVida na Fiocruz Amazônia. Estudei o período teórico de um ano e retornei para São Gabriel da Cachoeira em 2018 e fiquei lá até o ano de 2021, quando passei na seleção do Programa VigiFronteiras-Brasil. Pelo fato de ser um doutorado híbrido, que precisava de acesso à internet e na minha região o sinal era precário, tive que sair de São Gabriel e vim para o DSEI-Manaus, ainda trabalhando com saúde dos povos indígenas. Atuei no setor de novembro de 2021 até janeiro de 2023, quando já no doutorado, fui convidada para atuar na Secretaria de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, em Brasília.

Hoje eu moro na capital Federal e atuo na secretaria levando a experiência que tive nesses 10 anos, tanto de formação quanto de atuação na saúde indígena para que a gente consiga realizar planejamentos que sejam exequíveis, que garantam a equidade, que de fato façam uma atenção diferenciada aos povos indígenas.

ENTREVISTA

Indígenas e academia: diversidade e inclusão em políticas públicas e produção científica

O biólogo e mestre em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia, Luiz Penha, é natural de São Gabriel da Cachoeira (AM), município amazonense que concentra o segundo maior número de indígenas do país, segundo o Censo de 2022. Desde 2021, ele é um dos três alunos indígenas do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz. Em conversa conosco, ele compartilhou um pouco de sua história e da contribuição que pretende levar para o serviço de saúde onde atua.

- Pode nos contar um pouco sobre sua trajetória? Onde você nasceu e estudou?

Luiz Penha - Sou da etnia Tucano, natural de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, onde resido. Iniciei meus estudos no próprio município. Tive a oportunidade de me formar em biologia na Universidade de Brasília (UNB), onde fui aprovado por meio da política de cotas para indígenas. Ao concluir, voltei para trabalhar no município, com saúde indígena. Em 2015, participei do processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDa) da Fiocruz Amazônia, também pela política de cotas. Desde então, temos seguido há mais de 10 anos trabalhando com a saúde indígena, com epidemiologia de malária e da dengue.

- Como ficou sabendo da seleção para o programa e o que você acha dele ter ofertado vagas específicas para pessoas de origem indígena?

LP - O certame foi público. Ficamos sabendo por outros colegas que trabalham na saúde indígena, que compartilharam a divulgação do edital e a gente acabou tendo acesso. Acreditamos que incentivos como esse da própria Fiocruz, de trabalhar essa questão de equidade e diversidade dentro dos seus programas, têm dois lados positivos: do próprio aluno indígena ter a oportunidade de ingressar, e da própria instituição, que consegue ampliar os conhecimentos e buscar compreender temáticas sob o olhar indígena, do olhar do negro, no olhar do quilombola, da diversidade que existe. Todos ganham. É importante esse programa ter diversidade e esse incentivo.  

- Qual a sua expectativa com o doutorado e com o desenvolvimento da tua tese?

LP - Nossa expectativa como aluno indígena, não só deste programa, mas de outros no Brasil, é tentar contribuir ao máximo, o melhor possível, para as políticas públicas de saúde indígena e para os direitos dos povos indígenas. Nós vimos isso no mestrado, quanto no caminho agora do doutorado, da oportunidade de conversar com outros doutores, com pessoas que são importantes dentro da construção do SUS. Neste caso, que é um programa voltado também à saúde indígena, acreditamos que a formação de doutores indígenas também possa contribuir para o aperfeiçoamento do SUS. Entendemos que é preciso discutir a saúde indígena, que há uma necessidade de ampliar a visão da necessidade de acesso dos povos indígenas ao SUS, mas não apenas dentro do subsistema de saúde indígena, mas do SUS universal, das populações indígenas de contexto urbano, dos aldeados. A ideia é que a gente possa contribuir também na formação de novos alunos. Tem também um lado mais coletivo, de poder ser uma pessoa que pode incentivar outros indígenas a ingressarem na graduação, na pós-graduação.

- Na sua família e na sua etnia você é o primeiro a chegar a esse nível de formação acadêmica?

LP - Dentro da família eu serei o primeiro a estar como um doutorado. Sou o primeiro doutorando. Mas eu vejo que, depois que me graduei e fiz o mestrado, outros primos também se propuseram nesse caminhar também. Alguns estão na pós-graduação, outros se graduaram na saúde. Vemos hoje outros colegas de São Gabriel estudando em outros municípios. A gente brinca que alguns aonde você for no Brasil, vai ter um indígena Gabrielense porque ele está procurando se graduar, não só na área da saúde hoje em dia. Em São Gabriel hoje nós temos uma peculiaridade: temos doutores indígenas em linguística e mestres em outras áreas da educação.

Por isso as políticas de quotas para o acesso as universidades são importantes. E também discutir políticas para apoiar os estudantes dentro desses níveis, tanto na graduação quanto na pós-graduação, porque há um espelhamento de parentes e de outros povos de também buscar o conhecimento. Entendemos que vai ser e tem um retorno de estar contribuindo na forma de construção de políticas públicas, de uma luta e construção dos direitos dos povos indígenas.  

- Na sua opinião, que diferença faz ter outro indígena construindo essa política pública, tendo esse olhar diferenciado sobre a saúde?

LP - A importância de vários indígenas estarem atuando dentro dos programas é pela diversidade e representatividade. Nós temos mais de 180 povos, línguas diferentes e realidades diferentes. Entendemos que quanto mais acessibilidade tivermos, vamos poder estar discutindo de fato o que cada povo entende, o que é o sistema de saúde indígena na concepção de cada um deles. Ainda estamos muito distantes de entender a realidade do que é a concepção de saúde no povo Tucano, no povo Munduruku, no Caiapó, do Yanomami. A gente tem a concepção de saúde da OMS. E os anciões? Há um grande universo ainda que não está contemplado. Pode ser eu ou outro indígena que vai entrar em colaboração com um não indígena dentro da academia. A diversidade tem que estar dentro dessas fundações, dentro dos programas, para que isso seja visto e essa diversidade precisa ser contemplada, precisa ter essas peças fazendo parte dessa construção do conhecimento.