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Publicado em 04/10/2023
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O sequestro da internet: especialistas apontam colonialismo de dados, concentração tecnológica e disputa política sobre a perspectiva de sociedade

Autor(a): 
Fabiano Gama, Isabela Schincariol e Lucas Leal*

"Não podemos jogar fora a história do desenvolvimento da tecnologia e da sociedade, mas é preciso saber de forma clara o que está em jogo — e não é somente a tecnologia. A expectativa revolucionária da internet 'todos-todos' foi transformada em um jardim murado, e a experiência humana passou a ser matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. O que é extremamente grave", assegurou Nelson Pretto, durante a mesa "Educação: da inclusão digital à inteligência artificial", realizada no âmbito das comemorações de aniversário do Campus Virtual Fiocruz. Além de Pretto, o também especialista da área, Mariano Pimentel, integrou a mesa de debates e falou acerca da inteligência artifical para a educação, apontando a apropriação e posterior venda do que deveria ser livre como "o maior roubo da humanidade". As palestras estão disponíveis na íntegra no canal do Campus Virtual Fiocruz no Youtube.

Capilaridade das iniciativas e articulação institucional

Durante a mesa de abertura do evento, a vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado, falou sobre a alegria que é acompanhar o desenvolvimento do Campus Virtual Fiocruz, fruto de um esforço coletivo, criado na perspectiva de estender a possibilidade de apoio à educação por meio virtual para toda a Fiocruz. Para Cristiani, vivenciar o crescimento do Campus tem sido um rico processo, do qual ela muito se orgulha. "Ao longo dos anos, o CVF vem ampliando e diversificando suas ações, e é impressionante a quantidade de funções que desempenha atualmente", comentou ela, apontando que nossas ações tem sido fundamentais na disseminação de informações sobre a educação da Fiocruz; como plataforma de inscrições em cursos presenciais; no apoio aos cursos de qualificação; na oferta de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) para os cursos presenciais e híbridos; além de inovar na criação da plataforma Educare de Recursos Educacionais Abertos (REA), e já ter outros importantes projetos em desenvolvimento, como o auxilio à elaboração de indicadores de avaliação da educação e o portal dos estudantes e egressos. Tudo isso "em permanente diálogo com as diversas unidades e instâncias da Fundação, pois o Campus não é da vice-presidência de Educação, ele é da Fiocruz inteira", evidenciou. 

A coordenadora-geral de Educação da Fiocruz, Cristina Guilam, destacou a grande capilaridade das ações e iniciativas educacionais nas quais o Campus está inserido, como, por exemplo, os cursos em rede e as disciplinas transversais: "O CVF apoia a Fiocruz nessa missão de ser uma instituição nacional e internacional", disse ela. Já a vice-diretora de Ensino da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Enirtes Caetano — que no evento representou o diretor da Ensp, Marco Menezes —, falou sobre a alegria de poder celebrar a potência que é o Campus Virtual, além da satisfação de receber as integrantes da mesa, todas com história e forte vínculo com a Ensp. "Mais do que debater esse importante tema, celebramos e agradecemos especialmente o componente de cooperação presente na Vpeic, que, a todo momento, acolhe as unidades e nos convida a participar das diversas discussões institucionais para a Educação".

A coordenadora do Campus Virtual, Ana Furniel disse estar muito emocionada e agradeço a sua equipe que "trabalha, se dedica, está junta em todas as dificuldades e é também responsável por todos os avanços e conquistas". Ana agradeceu ainda aos que já passaram pelo CVF e rememorou sua trajetória na Fiocruz até dar início ao CVF. "A ideia na cabeça não veio só de uma inspiração, vem de muito trabalho e foi permeada por experiências e aprendizados ao longo dos quase 30 anos de Fiocruz. Nosso grande objetivo é qualificar profissionais para o SUS, e ajudar a fortalecer o nosso Sistema Único de Saúde. E eu acredito que se a gente pode sonhar, pode fazer!", defendeu ela com alegria.  

A internet e as novas formas de colonização social

Nelson Pretto trouxe uma ampla leitura sobre o passado, presente e futuro, mostrando que as tecnologias sempre estiveram presentes em nossas vidas, especialmente na educação, e sempre foram um desafio para a área. Além dos obstáculos, o digital traz grandes novidades e possibilidade, pois os avanços transformaram a nossa forma de ver e viver a tecnologia. Segundo ele, aqueles que viram o nascimento da internet acreditaram no sonho do verdadeiro potencial revolucionário dessas tecnologias: transformar radicalmente a comunicação tradicional, de massa, de 'um para todos' para uma comunicação de 'todos para todos'. Era a possibilidade de sermos autores, e a produção do conhecimento ser democratizada, mas isso, segundo ele, é uma doce ilusão. 

"A internet com a expectativa revolucionária foi sequestrada e se transformou em um jardim murado. Hoje, 99,9% das pessoas acham que navegam na internet quando estão em suas redes. Isso não é a internet. O poder é concentrado nas grandes empresas de Big Data, que se apropriam das nossas produções e decidem o que compartilham e como distribuem a partir de algoritmos opacos. É uma desanimadora batalha contra um enorme poder financeiro. Há que se estudar mais seriamente essa questão. Não podemos jogar fora a história do desenvolvimento da tecnologia e da sociedade, mas temos que ter claro o que está em jogo - e não é só a tecnologia. Há uma apropriação de tudo que fazemos e produzimos nas redes para alimentar a riqueza dessas poucas e grandes empresas. A disputa política sobre a perspectiva de sociedade nos faz pensar naquilo que vejo como fundamental, que é a não-neutralidade das tecnologias e a ameaça sempre presente de outra forma de colonização social, provocada por uma nova configuração da indústria tecnológica e cultural, advertiu Nelson, citando Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business sobre o que ela aponta como a era do capitalismo de vigilância: "A experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superavit comportamental do proprietário", o que é, para Nelson, extremamente grave. 

Esse "sequestro" de informações na internet equivale a um "roubo à humanidade", segundo o doutor em Informática e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Mariano Pimentel. Para ele, tecnologias de inteligência artificial (IA), como o ChatGPT, processaram grandes quantidades de informações e "emparedaram" todo o conhecimento sob um pagamento, em contrapartida à visão democrática de acesso que se esperava da internet. "Quando ele [o ChatGPT] começou a cobrar por uma tecnologia de ponta, uma inteligencia com maior capacidade de raciocínio, ficou claro que se tratava, então, do maior roubo da humanidade. Isso porque essa ferramenta se apropria de textos que estavam públicos, coloca nessa parede, como foi ilustrado pelo Nelson Pretto, sorri pra você e diz: me faz uma pergunta e eu te respondo. Só que você tem que pagar 20 dólares por mês", afirmou.

Em sua fala acerca dos riscos da inteligência artifical (IA), Mariano alertou que o uso dessa tecnologia na educação está se difundindo de forma acelerada, em especial no ensino superior, mas que logo deve se enraizar também no ensino médio e na educação básica. Ele levantou ainda a questão da suposta substituição do papel do professor pela IA. Segundo Mariano, a resposta não é obvia, pois há muita coisa em jogo. "No nosso país, a educação superior se tornou hegemonicamente à distância, e essa modalidade de educação já estava implementando a arte de ensinar sem professores ou com tutor não qualificado. Portanto, essa tecnologia se apresenta como mais uma das tecnologias para apoiar o cibertecnicismo. Então, essa questão precisa ser amplamente discutida", concluiu Mariano.

Além da mesa de debates, realizada na manhã do dia 28 de setembro, no auditório da Ensp/Fiocruz, a programação do aniversário incluiu ainda a realização de duas oficinas que abordaram temas centrais sobre nossos processos de trabalho cotidianos: a construção e desenvolvimento de cursos online autoinstrucionais, e a implementação de tecnologias assistivas para uma educação de fato inclusiva. 

A oficina 'Construção e desenvolvimento de cursos online autoinstrucionais em formato Mooc' foi apresentada pela gerente de produção do CVF, Renata David, e discorreu sobre as etapas fundamentais para a produção de cursos online, abertos e massivo (Mooc, na sigla em inglês). Esse formato é o utilizado nos cursos desenvolvidos pelo Campus Virtual Fiocruz e, durante a pandemia de Covid-19, permitiu o acesso de milhares de alunos em todo o Brasil e em diferentes partes do mundo a cursarem nossas formações. A oficina abordou conceitos, ferramentas e modelos para cursos autoinstrucionais, reforçando os papéis e responsabilidades da equipe transdisciplinar envolvida, e de acordo com a política institucional de acesso aberto ao conhecimento da Fiocruz, além de descrever as etapas de produção de conteúdo bruto, storyboards e aulas, conceitos e usos de recursos educacionais abertos (REA) e o apontamento dos processos de produção e inclusão dos REAs nos cursos. Renata detalhou que a proposta da atividade foi auxiliar os interessados em desenvolver cursos online a identificar os pontos prioritários de uma produção.

Os cursos Mooc são utilizados em diversas plataformas pelo mundo, e nasceram da necessidade da ampliação de acesso ao conhecimento com a intenção de serem abertos. Devido ao seu formato autoinstrucional, o aluno acompanha o conteúdo sem a presença de um tutor. No CVF, todo o material é disponibilizado em uma plataforma, onde qualquer pessoa pode acessar o material sem inscrição, ou seja, o aluno visualiza o material, mas não se certifica. Para a certificação, é necessário se inscrever para ter acesso à plataforma Moodle, na qual participará também de avaliações para conseguir o certificado.

A oficina "Inclusão e pós-graduação - Ranços e avanços: da Declaração de Salamanca ao período pandêmico" discutiu as diferentes necessidades de acessibilidade para a efetiva inclusão na educação online, e apresentou caminhos para esse processo de adaptação. A atividade foi conduzida pela pedagoga do Campus Virtual Claudia Reis, que discorreu sobre a sistematização da organização pedagógica de um curso — da ideia e planejamento à publicação e acompanhamento dos estudantes. "Trabalhar com educação pressupõe outros processos. É preciso pensar sistematicamente sobre ensinar alguma coisa, planejar, avaliar, costurar e, se necessário, retificar a metodologia adotada a partir da resposta dos estudantes", explicou ela. 

 

 

*Lucas Leal é estagiário sob a supervisão de Isabela Schincariol.

#ParaTodosVerem Fotomontagem com as imagens do evento em comemoração aos 7 anos do Campus virtual Fiocruz. Nas fotos na parte do superior é possível ver um senhor assinando um quadro, quatro mulheres posando para a foto e detalhes do quadro, onde está escrito: Campus virtual é Fiocruz, Fiocruz é SUS, SUS é democracia. Na parte inferior há um grupo diverso com várias mulheres e dois homens posando para foto em frente ao quadro com várias assinaturas, também há uma foto dos palestrantes durante a palestra com um powerpoint atrás deles, no centro uma foto maior com os participantes da palestra, Mariano Pimentel veste uma blusa social bege e usa óculos, Nelson Pretto veste uma blusa azul, usa óculos e tem cabelos brancos, Ana Furniel veste uma blusa preta com bolinhas laranja e tem cabelos cacheados castanhos e Cristiani Machado com blusa social vermelha e cabelos castanhos lisos na altura do ombro, na frente deles uma cadeira acolchoada e um microfone, atrás uma tela com powerpoint.