Se eu não conseguir fazer uma descoberta fenomenal, vou criar um termo. Quando apareceu esse negócio que comecei a pesquisar, eu disse: 'é Paleoparasitologia'

Home Se eu não conseguir fazer uma descoberta fenomenal, vou criar um termo. Quando apareceu esse negócio que comecei a pesquisar, eu disse: 'é Paleoparasitologia'
Voltar

Publicação : 23 DE OUTUBRO DE 2018

Autor(es) : Flávia Navarro da Silva Lobato

Se eu não conseguir fazer uma descoberta fenomenal, vou criar um termo. Quando apareceu esse negócio que comecei a pesquisar, eu disse: 'é Paleoparasitologia' Faleceu no dia 22/10, o ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), médico, pesquisador e criador da Paleoparasitologia, Luiz Fernando Ferreira – que dedicou-se ativamente aos campos da educação e às escolas da Fundação. Para homenageá-lo, o Campus Virtual Fiocruz conta um pouco sobre sua trajetória dedicada ao ensino, à formação de pessoas e à pesquisa em saúde e republica trechos de uma entrevista que Luiz Fernando concedeu à Revista Radis, em 2013.

Faleceu no dia 22/10, o ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), médico, pesquisador e criador da Paleoparasitologia, Luiz Fernando da Rocha Ferreira – que dedicou-se ativamente aos campos da educação e às escolas da Fundação. Para homenagá-lo, o Campus Virtual Fiocruz conta um pouco sobre sua trajetória dedicada ao ensino, à formação de pessoas e à pesquisa em saúde e republica trechos de uma entrevista que Luiz Fernando concedeu à Revista Radis, em 2013.


Uma vida dedicada à pesquisa e à educação

Luiz Fernando Ferreira ingressou na Fiocruz em 1966, como professor-titular da disciplina de Parasitologia na recém-criada Fundação Escola de Saúde Pública. Ali, fundou o Departamento de Ciências Biológicas). Em 1978, motivado pelo questionamento acerca da autoctonicidade da esquistossomose mansônica no Brasil, resolveu fazer investigações do parasito em fezes humanas preservadas (coprólitos) oriundas de diversos sítios arqueológicos brasileiros. Criava, assim, a paleoparasitologia.

Dirigiu a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) entre 1978/79 e ocupou na Fiocruz, consecutivamente, as vice-presidências de Recursos Humanos e de Ensino na gestão de Sergio Arouca (1985/90), contribuindo de forma decisiva para a criação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. No período de março a junho de 1990, assumiu interinamente a Presidência da instituição.

No ano de 2004, foi diplomado pesquisador-emérito da Fiocruz e, em 2005, tomou posse como membro honorário da Academia Nacional de Medicina. O pesquisador desenvolveu suas atividades no Departamento de Ciências Biológicas (Ensp/Fiocruz), e sempre foi incentivador da formação de recursos humanos para a saúde nos diferentes níveis escolares. Referência mundial nas pesquisas paleoparasitológicas, foi o principal responsável pelo aperfeiçoamento de grupos de pesquisadores na área.

Leia, a seguir, trechos da entrevista que Luiz Fernando concedeu à Revista Radis, em 2013.

Revista Radis: O senhor é considerado o criador de um novo campo de estudo científico, a Paleoparasitologia. O que o levou a pesquisar esta área?
Luiz Fernando:
 Antes de vir para a Escola Nacional de Saúde Pública, eu trabalhava na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na cadeira de Doenças Tropicais, estudava esquistossomose e gostava de ler a história da pesquisa. Um dia, caiu na nossa mão um artigo, publicado aqui nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, de Bernardo Figueiredo Magalhães e Caio Benjamin Dias. Ao contrário de toda a ortodoxia que dizia que a esquistossomose mansoni veio da África, com a importação dos escravos, eles defendiam que a doença era autóctone da América. Isso despertou nosso interesse. A argumentação deles era muito complicada e eu pensei num jeito de argumentar de maneira mais simples, que todo mundo pudesse entender. Nesse meio tempo, apareceu o Adauto, que veio fazer o mestrado. Ele topou estudar o assunto e definimos que a tese dele seria sobre esquistossomose. Nós perguntamos então a um amigo arqueólogo, o Ondemar Dias, se ele tinha coprólitos, que são fezes mumificadas, secas ou mineralizadas. Ele me disse: “Ah, Luiz Fernando, pouca gente se interessa por fezes; milenares então, muito menos! Você vem aqui que tenho um monte” (risos).

Adauto - Nesta época [começo dos anos 1980], o Luiz Fernando era diretor da escola, eu era professor de Parasitologia da UFRJ e o Ulisses Confalonieri era professor na Rural. A gente se reunia para estudar e acompanhar o que estava acontecendo. Não havia nada de literatura, não havia internet, e era muito difícil conseguir as revistas, que chegavam aqui com atraso. Mas as coisas andavam.

E o que descobriram com esses estudos?
Luiz Fernando:
 Adauto concluiu que a hipótese da doença autóctone estava errada. Nunca encontramos esquistossoma pré-colombiano. Se a gente tivesse encontrado nos coprólitos, que datavam de antes da vinda de escravos, seria uma prova direta de que a doença era autóctone. Mesmo assim, ele pode fazer uma tese brilhante, sobre ancilostomose [doença provocada por vermes da espécie Ancylostoma duodenali e Necator americanus, que se instalam no sistema digestivo dos seres humanos e passam a se alimentar do sangue do hospedeiro]. Diziam que o Necator americanus veio da África e o Ancylostoma duodenali veio da Europa, com a migração. Adauto mostrou que a ancilostomose era autóctone do continente. Isso foi uma revolução.

Quais as implicações dessa descoberta?
Luiz Fernando: 
A ortodoxia dizia, e continua dizendo, que o homem entrou na América pelo Estreito de Bering e depois veio descendo. A tese do Adauto também permitiu questionar essa migração pré-histórica. Mesmo se houvesse ancilóstomo na Ásia e este passasse o Estreito de Bering, iria se perder. O ancilóstomo depende do solo, de temperatura adequada, que não é a das regiões geladas. Isso significa que quem trouxe o ancilóstomo — antes da entrada do branco, que veio da Europa, e do negro, da África — só pode ter vindo pelo mar. O norueguês Thor Heyerdahl conta, no livro A Expedição Kon-tiki, como aprendeu com velhos índios no Lago Titicaca [nos Andes, entre Peru e Bolívia], a fazer barcos com fibras, sem pregos e sem martelos. Ele fez a viagem ao contrário — do Peru à Micronésia — mostrando que era possível a travessia por mar. Nós defendemos esta posição em função do parasita, que se presta muito a interpretar essas coisas.

O que mais foi descoberto?
Luiz Fernando:
 Com o aparecimento das técnicas de biologia molecular, mostramos que a Doença de Chagas era muito mais antiga. Todo mundo dizia que ela era da casa de sapê, que dá alojamento ao barbeiro. O Adauto percebeu que os arqueólogos que trabalhavam com pinturas rupestres, nas cavernas de São Raimundo Notato [no Piauí] eram atacados por barbeiros. Então, pensou que os barbeiros também poderiam ter atacado os antigos moradores. Disso, resultou um trabalho dos pesquisadores Arthur Aufderheide, Bernardo Ariazza e Felipe Guhl. Depois nós encontramos a Doença de Chagas em múmias, com as técnicas de biologia molecular. [Estudo coordenado por Luiz Fernando e Adauto, em parceria com a arqueóloga Niède Guidon, em 2009, provou que a doença de Chagas já infectava populações pré-colombianas há 26 mil anos].

Quais as principais contribuições que a Paleoparasitologia já ofereceu a Saúde Pública e para outras áreas de conhecimento?
Luiz Fernando:
 Ela recebe contribuições de várias áreas, mas retribui com conhecimentos sobre a evolução das doenças e dos parasitas. Hoje, estamos discutindo Doença de Chagas, sobre como evoluíram os trypanosomas, quem foram os primeiros hospedeiros, quando estes se diversificaram. Você pode compreender a filogenia dos parasitas para melhor combater as doenças. Você também pode estudar migrações, hábitos alimentares... É um mundo de possibilidades.

Podemos dizer que ousadia, senso de oportunidade e interdisciplinaridade são essenciais para se desbravar um novo campo de conhecimento?
Luiz Fernando: São fundamentais. Quando eu li Anafilaxia, do Richet [Charles Robert Richet (1850-1935), médico francês], que foi prêmio Nobel de Medicina, fiquei entusiasmado. Ele conta suas primeiras experiências, em que injetou tentáculos de actínia [pólipo encontrado nas rochas litorâneas, conhecido como anêmona do mar] num cachorro. De acordo com o conhecimento de época, ele esperava que, ao receber uma segunda dose desse veneno, o cachorro estaria protegido. Aconteceu o contrário. A experiência desencadeou um choque anafilático no animal e o termo anafilaxia foi criado. Então eu, rapazinho, lendo aquilo, pensei: “Se eu não conseguir fazer uma descoberta fenomenal, vou criar um termo”. Quando apareceu esse negócio que comecei a pesquisar, eu disse: “é Paleoparasitologia” [Luiz Fernando lançou o termo em 1979, durante o Congresso Brasileiro de Parasitologia]. Antes disso, nos textos mais antigos, havia muita especulação e muito racismo: tudo vinha da África. Existe até um livro que confirma isso, Doenças africanas no Brasil, do baiano Octavio de Freitas (1935). Com a Paleoparasitologia nós podemos comprovar que as parasitoses intestinais já estavam aqui antes da chegada dos africanos.

Arlindo Gómez [superintendente do Canal Saúde] nos contou ‘causos’ do senhor envolvendo o transporte dos coprólitos. É verdade que o senhor já viajou com múmias na bagagem?
Luiz Fernando: No começo, a gente não tinha financiamento, era tudo por nossa conta, principalmente porque as técnicas eram muito baratas. O trabalho era dissolver o coprólito em fosfato trissódico (que é barato), e depois analisar no microscópio. Eu gostava de provocar e dizia: “Não preciso de financiamento de CNPq” (risos). Depois isso se complicou, com as técnicas de biologia molecular, e passamos a precisar. Soubemos que em Itacambira (Minas Gerais) havia múmias à beça. Compramos passagem de ônibus para Belo Horizonte e, de lá, fomos de jipe a Itacambira, pegamos as múmias e voltamos. Vinham as cabeças numa saca, os corpos, nos cobertores. Era feriado, a rodoviária cheia de gente. Houve um momento em que dormi, as cabeças rolaram e Adauto teve que pegá-las. Ainda tivemos que discutir com o chofer do ônibus para que as múmias viessem ao lado da gente.

Como foi dirigir a Ensp?
Luiz Fernando: Eu fui diretor da escola e presidente da Fundação, mas nunca me candidatei. Sempre foi no meio de crises. Dirigi a escola [entre 1978/79] depois que Oswaldo Costa [diretor entre 1973 e 1978] teve um acidente cerebral e Joir [Joir Gonçalves da Fonte] teve um infarto [também em 1978]. Vinícius da Fonseca, que era o presidente da Fundação, me chamou e disse que eu seria o diretor. Quando comecei a dar aulas, não havia o compromisso de ser professor da escola, éramos convidados. E os cursos eram separados. Havia um para médicos, outro para farmacêuticos, outro para enfermeiros, outro para engenheiros. Foi o Blois [Edmar Terra Blois, diretor da então Fundação Ensino Especializado em Saúde Pública (Fensp)], o terceiro diretor, que juntou os cursos em um só e fez a Escola Nacional de Saúde Pública, com quadro de professores.

Fale um pouco do período em que foi vice-presidente da Fiocruz, com Sergio Arouca na presidência.
Luiz Fernando: 
O Arouca tinha uma sabedoria notável. Ele nunca pedia o que não era natural você fazer. Éramos os vices eu, Arlindo e [Carlos] Morel. Fiquei com a parte de ensino. Foi um período muito agradável, porque Arouca era muito fácil de conviver.

Uma das marcas dessa época era a possibilidade de sonhar, tomar decisões e implementá-las. Conte sobre a criação da Escola Politécnica Joaquim Venâncio.
Luiz Fernando: Tinha, sim, essa coisa afetiva. Sentávamos no bar Garota de Bonsucesso, tomávamos chope e o Arlindo rabiscava uma porção de coisas no guardanapo de papel. Uma vez, uma moça veio me perguntar: “Quando vocês fizeram a Escola Politécnica, que escola pedagógica seguiram? Foi Piaget?”. Não pensamos em nada disso! Quando eu era garoto, era trazido pra cá e gostava. Então, resolvemos fazer igual.

É verdade que a Escola Politécnica é a menina dos seus olhos?
Luiz Fernando: É... [risos]

André Malhão [pesquisador e ex-diretor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)] nos pediu que o senhor falasse sobre a relação que havia entre Joaquim Venâncio e Adolfo Lutz.
Luiz Fernando:
 Joaquim Venâncio era semianalfabeto e veio trabalhar na limpeza do laboratório do Lutz. O Lutz viu que ele era muito inteligente e pediu para sua filha Berta ensiná-lo. Joaquim Venâncio era brilhante! Quando morreu, a Academia de Ciências publicou nota sobre ele. Tem muitas histórias envolvendo esses dois. O Chico Trombone [o auxiliar de laboratório Francisco Gomes, do IOC, discípulo de Carlos Chagas] contava que quem descobriu a Reação de Galli Mainini, que se usava para dar diagnóstico de gravidez, foi o Joaquim Venâncio. Injetava-se a urina da mulher no sapo e, se aparecesse espermatozoide, isso indicava que a mulher estava grávida. Segundo o Chico, foi o Joaquim Venâncio que descobriu a reação e comentou com o Mainini. Outra história: quando o rei Alberto I, da Bélgica, veio ao Brasil, em 1922, eles foram a um piquenique na Floresta da Tijuca. Chegando lá, o doutor Lutz disse: “Ou eu sento na mesa da Rainha com o Joaquim Venâncio, ou sentamos os dois na dos empregados”.
 

Mais Entrevistas