Não é aceitável um modelo educacional em que alunos do século XXI são 'ensinados' por professores do século XX, com práticas do século XIX

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Publicação : 26 DE ABRIL DE 2017

Autor(es) : Flávia Navarro da Silva Lobato

Não é aceitável um modelo educacional em que alunos do século XXI são 'ensinados' por professores do século XX, com práticas do século XIX Não é aceitável um modelo educacional em que alunos do século XXI são 'ensinados' por professores do século XX, com práticas do século XIX

Por Sara Dias Oliveira (Notícias Magazine)
Foto: Nuno Pinto Fernandes (Global Imagens)

José Pacheco, professor, pedagogo, defende uma escola sem turmas, sem ciclos, sem testes, sem reprovações, sem campainhas. Aos críticos, pede alternativas e conta histórias de sucesso. Fundou um projeto inovador na Escola da Ponte, em Santo Tirso, em 1976, quando percebeu que não podia continuar a dar aulas. Derrubou paredes, juntou alunos, ergueu um método no qual quem aprende define o seu ritmo de aprendizagem. Foi ameaçado, ouviu coisas feias, disseram-lhe que quando fosse mais velho iria ganhar juízo. Tem agora 65 anos e não mudou de ideia. Continua a acreditar que a escola são pessoas e não um edifício. Não percebe a insistência nos exames, diz que se confunde avaliação com classificação, refere que "tomar chumbo" comprova que o sistema não funciona.
 

José Pacheco

Há 12 anos, partiu para o Brasil com o seu projeto na mala. Partiu por duas razões. "Permitir que uma nova equipe da Escola da Ponte continuasse o projeto sem a intromissão de um velho professor, e encontrar no Sul a obra de Agostinho da Silva e educadores disponíveis para se melhorar, melhorando a educação das crianças e jovens", explica. Neste momento, do outro lado do Atlântico, acompanha mais de 100 projetos educativos. O Projeto Âncora é o mais conhecido e já ganhou fama internacional, após visitas de investigadores estrangeiros. Há uma semana, José Pacheco esteve em Portugal, em várias cidades – Almada, Loulé, Fundão, Viseu, Gouveia – compartilhando ideias, falando sobre o que sabe, ouvindo alunos, professores, educadores, responsáveis políticos. Partiu depois para o Chile, para fazer formação, a convite de universidades e do governo chileno. Em meados de abril, regressa ao Brasil para retomar a orientação de projetos educativos.

Notícias Magazine: Em 1976, no rescaldo da liberdade, o senhor criou com duas colegas o projeto pioneiro "Fazer a Ponte na Escola da Ponte". Sem turmas, sem testes, sem ciclos, sem campainhas. Chamaram-lhe louco quando dizia que era possível derrubar paredes e juntar alunos?
José Pacheco: Confesso que, nos idos de 1976, estava quase desistindo de ser professor. Sentia que "dando aula" estava excluindo gente. Percebi que não devia continuar, mas não sabia fazer mais nada. A Ponte surgiu, talvez não por acaso, para me dar uma última oportunidade. Era uma escola como qualquer outra escola pública degradada, que albergava as chamadas "turmas do lixo", majoritariamente constituídas por jovens de 14, 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores. Ali, encontrei duas pessoas, que faziam as mesmas perguntas: "por que dou as aulas tão bem dadas e há alunos que não aprendem?"...

Notícias Magazine: E então?
José Pacheco: Aconteceu algo inusitado. Éramos profissionais competentes, mas nos deparávamos com a falta de um compromisso ético com a profissão. Se o modo como a escola funcionava negava a muitos seres humanos o direito à educação, não poderia continuar a ser gerida desse modo. Se o modo como trabalhávamos não lograva assegurar a aprendizagem a todos os alunos, não poderíamos insistir nesse modo de ensinar. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de serem sábios e felizes. Começamos a receber alunos expulsos e evadidos de outras escolas, alunos a quem chamavam "deficientes". Chamaram-nos de loucos, lunáticos e outros epítetos que, por pudor, não reproduzo. Quando fiz as primeiras intervenções públicas, mais do que dizerem que o projeto era um arroubo de jovem professor, diziam-me que, quando eu fosse mais velho, iria ganhar juízo. E os detratores agiram de forma violenta, explícita. Um dia, talvez eu conte a história da Escola da Ponte. Ela foi feita de sofrimento e resiliência.

Notícias Magazine: Foi assim tão difícil?
José Pacheco: No decurso de mais de quatro décadas, foi muita a maldade humana que determinou as ações dirigidas contra a Ponte. Da destruição da nossa horta à destruição do hospital de animais, que as crianças cuidavam com tanto desvelo, ações levadas a cabo por criminosos a soldo de políticos locais, que pintaram com o sangue das vítimas na parede da escola: "Morte ao professor". Do lançamento de panfletos, na calada da noite, contendo acusações falsas, até a publicação de boatos em jornais. Do terrorismo verbal, por telefone, à agressão física. O sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Percebemos que o maior aliado de um professor é o outro professor, mas também que o maior inimigo de um professor que ouse fazer diferente — para melhor — é o professor da escola do lado.

Notícias Magazine: Quando chegou à Escola da Ponte, ficou com uma "turma do lixo". Foi aí que percebeu que estava tudo errado?
José Pacheco: Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos que tinham sido ensinados do modo que eu ensinava antes. Se eu continuasse a trabalhar da forma como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos.

Notícias Magazine: Diz que numa aula não se aprende nada, que os exames são o método mais falível que existe, que "tomar chumbo" é a prova que a escola não funciona. O que pode ser diferente? Como se avalia um aluno?
José Pacheco: A afirmação é radical. Mas toda regra tem exceção. Aprendi francês escutando aula, porque me apaixonei pela professora. A aprendizagem é antropofágica. Não se aprende o que o outro diz, apreendemos o outro. Um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. Poderá acontecer aprendizagem em sala de aula, se forem criados vínculos e esses vínculos não são apenas afetivos, também são do domínio da emoção, da ética, da estética… O que dizer da avaliação? Que quase não existe nas escolas. Um ministro de má memória introduziu mais exames no sistema. Mais exames não melhoram o sistema, porque não é a preocupação com o termômetro que faz baixar a temperatura. O teste é o instrumento de avaliação mais falível que existe. Conceber itens de teste, garantir fidelidade e tudo mais é um exercício extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as mesmas para todos quando se aplica o teste. Além disso, corrigir o teste também introduz uma subjetividade enorme. Esses instrumentos de avaliação apenas "provam" a capacidade de acumulação cognitiva, de armazenamento de informação em memória de curto prazo, para debitar no exame e esquecer.

Notícias Magazine: Qual é então o modelo de avaliação que preconiza?
José Pacheco: A avaliação praticada na Ponte e no Projeto Âncora é aquela que a lei estabelece: avaliação formativa, contínua e sistemática. Em muitas escolas aplica-se o teste e é dada uma nota sem saber o que se faz. Há quem confunda avaliação com classificação e dê a nota a partir dos resultados dos testes. Eu sei que se alega considerar uma percentagem da nota dada a partir da avaliação de atitudes. Porém, não se apresentam os instrumentos de avaliação que permitam medir atitudes como a autonomia ou a criatividade. Diria que essa avaliação é feita a "olhômetro". O ex-ministro Marçal Grilo afirmou que "as provas globais começam a ser inúteis". Qualquer pessoa minimamente avisada, minimamente conhecedora dos ainda ocultos saberes das ciências da educação – bode expiatório de todos os males que apoquentam a educação deste país – sabe que a solução não passa por haver mais exames. Se quisermos falar de avaliação em linguagem de gente, poderíamos dizer que a quase exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação tem sido responsável por graves erros. Atenda-se ao exemplo do candidato à medicina que, por um centésimo, não possou para o curso desejado.

O professor José Pacheco esteve em Portugal a debater educação. Aqui, em Almada, no Instituto Piaget.

O professor José Pacheco esteve em Portugal debatendo educação. Na foto, em Almada, no Instituto Piaget

Notícias Magazine: Mas a verdade é que a avaliação em Portugal continua a ser toda baseada em teste e exames.
José Pacheco: E os fervorosos defensores dos inúteis exames saberão em que consiste assegurar a validade ou a fidelidade de um item? Saberão aquilatar a subjetividade da correção de uma prova de exame? Terão conhecimento das grosseiras fraudes que os exames engendram? Terão passado, alguma vez, pela angústia da espera, foram afetados por uma ansiedade geradora de bloqueios? Os debutantes e amadores das coisas da educação não leram nos jornais – que literatura especializada não terão lido, a avaliar pelos disparates que vão debitando na comunicação social? – notícias de frequentes e abissais alterações de pontuação que decorrem da reapreciação de recursos? Na avaliação que ainda temos como hegemônica, é bem visível a ancestral prática seletiva. O ensino em massa é coerente com uma avaliação em massa. Os professores lamentam o dispêndio de tempo posto na correção de exames e alegam que o ministério os explora como mão-de-obra barata. Por sua vez, o ministério gasta fortunas em comissões a quem compete elaborar os testes e coordenar o serviço de exames, em viaturas e seguranças que transportam envelopes lacrados como se fossem as joias da coroa. Se não houvesse outra razão para acabar de vez com exames, uma se imporia. Associada à ideia de exame há sempre a probabilidade de utilização de "copianços". Para cada sala de exame que se preze, são escalados professores que, pressupostamente, são a garantia de que os examinados não "copiam'. Os "vigilantes" partem, pois, do pressuposto de que todo o aluno é, até prova em contrário, potencialmente desonesto. Haverá princípio mais antipedagógico que este?

Notícias Magazine: O que o senhor defende esbarra num sistema ancorado em avaliações, notas, médias. O discurso político que se baseia no rigor e exigência na educação não o convence? 
José Pacheco: O sistema somos nós. Que rigor e que exigência existem num modelo educacional no qual alunos do século XXI são "ensinados" por professores do século XX, que recorrem a práticas oriundas do século XIX? Rigor e exigência existirão em escolas onde se dê a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso.

Notícias Magazine: E como se chega aí?
José Pacheco: É incontornável falar do nó górdio da mudança das práticas escolares: a formação de professores, que continua imersa em equívocos. Continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas ainda há quem ignore a existência do princípio do isomorfismo na formação, quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no contexto de uma equipe, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipe. Venho repetindo que a profissão de professor não é um ato solitário, mas solidário. Que o trabalho em equipe pressupõe um permanente convívio, estabilidade e lealdade a valores e princípios de um projeto. Isso não acontece numa escola de tempo parcial. Por que 50 (ou duas vezes 45) minutos de aula, se a aprendizagem acontece 24 horas por dia? Por que 200 dias letivos, se nos educamos nos 365 (ou 366) dias de cada ano?

Notícias Magazine: O país alimenta um sistema de ensino baseado na burocracia? O Governo fala em dar mais autonomia às escolas, em flexibilização de currículos, em mais aulas experimentais…
José Pacheco: Urge acabar com o experimentalismo. Alunos e professores não podem ser tratados como cobaias de laboratório. Acredito nos professores e parto daquilo que eles são para que se sintam seguros no processo de mudança. Aproveito a sua formação experiencial. Concedo todo o tempo necessário e condições de autotransformação. Talvez apenas seja preciso que os professores, para além de serem competentes, sejam éticos para que a mudança se opere. Mas é verdade que o país alimenta um sistema de ensino baseado na burocracia. Recordo um lamentável episódio. No fim de um ano letivo, com assiduidade plena e significativas aprendizagens realizadas, os alunos da escola de Monsanto "reprovaram por excesso de faltas". Eu sei que parece mentira, mas aconteceu… As escolas são pessoas, mas o Ministério da Educação crê que uma escola é um edifício. E uma crença não se discute, deve ser respeitada. Porém, crenças e "achismos" não deverão ser suportes de política educativa. Autoritária e arrogantemente, burocratas enquistados no sistema educativo impõem práticas desprovidas de fundamento científico, ou legal (terão lido o artigo 48º da Lei de Bases?). Ousam tomar insanas decisões, como o despropósito da reprovação por excesso de faltas, porque estão conscientes da impunidade dos seus atos e contam com o obsceno silêncio dos pedagogos. A que faltas se refere o ministério, dado que os alunos estiveram em situação de ensino doméstico e até estiveram dentro de um edifício, o que o ministério chama escola? Conseguirá o ministério explicar por que razão alunos com 100% de assiduidade reprovam, enquanto outros jovens aprendem fora do edifício da escola?

Notícias Magazine: Conte lá essa história.
José Pacheco: Tudo começou em 2014, quando uma escola  que tinha acabado de ser inaugurada foi fechada pelo Ministério de Educação. Os pais dos alunos optaram pelo ensino doméstico, o agrupamento de escolas deu luz verde ao processo, e as crianças foram acompanhadas por duas professoras. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação positiva aos alunos, atribuída pelas docentes. O ministério considerava ilegal a situação dos alunos, enquanto a Comissão de Proteção de Crianças afirmava que o alegado "abandono escolar" não fora provado. Os pais dos alunos pediram nova transferência dos seus filhos para o ensino doméstico, pedido que, garantem, foi aceito. E, enquanto o caso não se resolve, uma escola recém-inaugurada, e que custou 100 mil euros, está fechada. As crianças são transportadas para a sede do município, que fica a 30 km de distância de Monsanto. São duas viagens diárias impostas por burocratas, que "acham" que as crianças devem estar fechadas no interior de um edifício a que chamam escola, numa sala de aula com x metros quadrados de área, durante x número de horas em x dias ditos letivos. Desfecho do lamentável episódio: a ignorância é atrevida e triunfou. Provavelmente, aqueles que detêm o poder de decidir confundem escola com edifício escolar. Relativamente a Monsanto: saberão o significado de avaliação formativa, contínua e sistemática? À luz da ciência produzida, há um século, a expressão "reprovar por faltas" é uma obscenidade. Serão analfabetos funcionais? Certamente terão lido o artigo 48 da Lei de Bases, mas foram incapazes de interpretar o seu significado.

Notícias Magazine: Se é como diz, como isso foi possível?
José Pacheco: Há cerca de uma dúzia de anos, e com burocráticos argumentos, um ministro de má memória tentou destruir o projeto da Escola da Ponte. Os sindicatos, a universidade e a sociedade civil impediram que essa obscenidade ministerial obtivesse êxito. Na presente situação, os professores portugueses permitiram que o autoritarismo imperasse e que critérios de natureza pedagógica fossem desprezados. Permaneceram apáticos. Mais uma vez, nada fizeram para acabar com a impunidade. É estranho e pesado esse obsceno silêncio. O professor assume dignidade profissional, sendo autónomo-com-os-outros. Porque um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. E enquanto o exercício da profissão não se pautar por critérios de natureza pedagógica, enquanto a burocracia prevalecer em detrimento da pedagogia, os professores continuarão a ser considerados os «bodes expiatórios» dos males do sistema. Faltará apenas que os professores sejam, efetivamente, críticos, reflexivos das suas práticas. Que, na relação com qualquer parceiro, se elimine o período letivo, o trimestre, o ano letivo.

Notícias Magazine: Quarenta anos depois, a Escola Básica da Ponte tem nota máxima na avaliação externa do Ministério da Educação. Os alunos, em conjunto com os tutores, definem quinzenalmente objetivos de aprendizagem e são avaliados à medida que aprendem. Seria possível disseminar este projeto em Portugal?
José Pacheco: Não diria disseminar, mas inspirar. São já muitas as escolas portuguesas que se inspiraram nas práticas da Ponte para mudar as suas práticas. Na Ponte de 40 anos atrás, as salas de aula foram substituídas por espaços de "área aberta". Depois, deram lugar a aprendizagens em múltiplos espaços sociais (edifício da escola incluído), num anúncio da possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem. No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, um projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno. São muitos e diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o que significa o termo "currículo". É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente "pública". Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca "ganha-ganha". As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as "naturalizações", as "certezas", as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia.

Notícias Magazine: Tem sido um trabalho de parto muito demorado…
José Pacheco: Creio que ainda não é consensual, mas é incontornável. A Ponte provou a possibilidade de uma escola onde todos aprendam e sejam felizes. Operou uma ruptura total com o velho e obsoleto modelo educacional, que ainda prospera na maioria das escolas. Garante o direito à educação, que a maioria das escolas recusa. E numa escola da rede pública! Os efeitos do projeto que relatórios de comissões de avaliação independentes atestam são bem melhores do que os obtidos pelas escolas ditas "normais". Esses resultados constam de relatórios de avaliação externa, elaborados por equipes nomeadas pelo Ministério da Educação. São produto de uma avaliação isenta e atestam a elevada qualidade das aprendizagens realizadas pelos alunos. O último dos relatórios de avaliação nos diz que, quando vão para outras escolas, os alunos da Ponte alcançam melhores notas do que os alunos de outras escolas conseguem alcançar. E, se no domínio cognitivo isso acontece, muito mais significativos são os níveis de desenvolvimento sócio-moral. É grande a preocupação com a vertente ética, e sabemos que o desenvolvimento estético anda ao lado do desenvolvimento cognitivo, sendo mutuamente influenciados. Não fragmentamos os saberes: estudos realizados com adultos formados ao longo dos últimos 30 anos demonstram que todos os nossos ex-alunos são pessoas socialmente integradas e realizadas. Talvez possa acrescentar que a Escola da Ponte provou que é possível outra educação, aliando excelência académica à inclusão social.

Notícias Magazine: Em Cotia, cidade perto de São Paulo, no Brasil, o senhor criou uma escola que tem uma tenda de circo com oficinas de skate, kart, azulejos, música, para crianças dos 12 aos 14 anos que vivem em favelas. Como se ensina em contextos de vulnerabilidade social, econômica, cultural?
José Pacheco: Fui para o Sul apenas porque precisava me afastar de uma escola onde trabalhei durante mais de 30 anos, para que novas equipes continuassem o projeto. Acredito nos professores. E encontrei no Brasil, como havia encontrado em Portugal, muitos professores que possuem os dois requisitos básicos da profissão: competência e ética. Acompanho os seus projetos e com eles aprendo. Isso me basta. É preciso apenas que haja gente, educadores conscientes da necessidade e possibilidade de mudança, que se constituam numa equipe de projeto. Que saibam escutar sonhos e necessidades da comunidade em que estejam inseridos. E que ajam em função da lei e da ciência. Não há duas escolas iguais, nem acredito em modelos. Portanto, não existe a possibilidade de surgirem projetos iguais. Aquilo que é afim entre os projetos é a ruptura com uma tradição de educação hierárquica e burocrática. São escolas que, com prudência (crianças, não cobaias de laboratório), ousam reconfigurar as suas práticas, assumir formas específicas de organização do trabalho escolar, em dispositivos de relação, nas atitudes do dia-a-dia, que viabilizam práticas de educação integral. Outra semelhança é o fato de essas escolas cumprirem, efetivamente, os seus projetos político-pedagógicos.

Notícias Magazine: O governo acaba de traçar o que deve ser o perfil dos alunos ao saírem da escolaridade obrigatória: jovens perseverantes, com pensamento crítico, que querem aprender mais. É este o caminho? 
José Pacheco: É um dos caminhos a partir de uma boa proposta lançada, em boa hora, pelo secretário de Estado, João Costa. Que não se suspenda esta medida de política educativa. Que não se hipoteque mais uma possibilidade de mudança a troco de votos nas autárquicas… As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. Muitos anos são necessários para que se consolidem. Apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, nos últimos anos não se conseguiu melhorar a qualidade da educação nacional. Mas Portugal tem tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de serem cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.

Notícias Magazine: O que diria a uma criança de seis anos antes de entrar na escola? E a um jovem que acaba o 12º ano?
José Pacheco: Tenho netos dessa idade e não sei o que lhes dizer.

Notícias Magazine: E o que diria aos pais que têm um filho que vai entrar na escola? E aos pais que tem um filho que saiu da escola e não quer ir para a universidade?
José Pacheco: Que procurem nas escolas professores que ainda não tenham morrido. E que com eles colaborem, para bem dos seus filhos. No início do projeto da Ponte, compreendendo o medo e respeitando a atitude conservadora daqueles que não queriam mudar, começamos um trabalho à parte. Inicialmente os alunos reagiam mal, porque era mais cômodo ouvir aula do que trabalhar em pesquisa, em projeto. Depois foram os professores das outras escolas que começaram a nos criar dificuldades. Os pais dos alunos manifestavam dúvidas e receios, apenas desfeitos quando os seus filhos obtiveram excelentes resultados em provas nacionais e vestibulares. Os pais são pessoas inteligentes e amam os filhos. Os professores são pessoas inteligentes e amam os alunos. Estão do mesmo lado. Se explicamos aos pais, numa linguagem que eles entendem, que aula não tem que existir, que prova não prova nada, que o fundamental não precisa ser separado do resto, enfim, os pais entendem. Melhor que isso, no caso da Escola da Ponte, os pais entenderam tão bem que defendem o modelo e são eles que dirigem a escola. A questão é que quem sabe de pedagogia são os professores. É essa a grande distinção. Uma escola tem que ser gerida pela pedagogia, mas quem deve administrar financeiramente é a comunidade, através das famílias e dos pais. Os pais têm direito de ficar em dúvida. Querem a escola para os filhos que foi a escola deles. Mas se os pais forem esclarecidos e virem resultados apoiam e defendem os projetos. Foi isso o que aconteceu na Escola da Ponte. Ela é dirigida pelos pais. Não tem diretor.

Notícias Magazine: Há bons e maus alunos?
José Pacheco: Somos todos bons e maus alunos. Há boas e más práticas. E se identificamos necessidades especiais nos alunos, reconheçamos necessidade nos professores. Se é verdade que há dificuldades de aprendizagem, também haverá as de ensinagem. E não há alunos deficientes, mas práticas deficientes.

Notícias Magazine: Um professor não ensina aquilo que diz, transmite aquilo que é. A frase é sua. Mas há professores desmotivados, desanimados, à espera que a reforma chegue rapidamente… 
José Pacheco: Os alunos aprendem o professor. O despertar da atenção do professor será o despertar da atenção do aluno. As escolas dispõem de excelentes professores a trabalhar do modo errado. E acontece o inevitável: doenças profissionais, idas ao psiquiatra, burnout…

Notícias Magazine: As novas tecnologias vieram para ficar. Devem ou não estar nas escolas? Como é que os pais devem lidar com o "vício" do filho estar sempre agarrado a um tablet, a um computador, a videojogos?
José Pacheco: Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada. Mas do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas nas escolas, temo que se transformem em panaceias, que apenas sirvam para congelar aulas em computadores, aulas que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade dessas tecnologias, acriticamente consumam, sem resquícios de cooperação com o aluno vizinho, dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais. A internet é generosa na oferta de informação. Basta clicar para repetir, até que a matéria seja compreendida. Tudo aquilo que um professor pode "ensinar" numa aula está plasmado, de modo mais atraente, na tela de um computador. Os professores do "futuro" irão se manter ancorados em aulas obsoletas servidas por lousas digitais ou irão se atualizar? Irão replicar aulas congeladas no YouTube e em tablets, ou usar o digital a serviço da humanização da escola? É evidente: as novas tecnologias são incontornáveis. A internet não é uma ferramenta, é uma sociedade. Apenas será necessário saber o que fazer com as novas tecnologias. É certo que as escolas têm se enfeitado de novas tecnologias, mas sem conseguir intensificar a comunicação e a pesquisa. O modo como as escolas utilizam a internet fomenta imbecilidade e solidão.

Notícias Magazine: A distinção entre ensino público e ensino privado, na maior parte dos indicadores educativos, é regra no nosso país. Essas comparações fazem sentido?
José Pacheco: As comparações e os rankings são disparates. Nem vale a pena comentar.

Notícias Magazine: Muitos professores têm de andar com a casa às costas. Não é possível acabar com as fórmulas que colocam docentes tão longe das suas famílias?
José Pacheco: Será possível evitar que os professores andem com a casa às costas quando se substituir o velho modelo por novas construções sociais de aprendizagem. Algo difícil dado que professor é a única profissão em que o estágio é feito antes de tirar o curso. Ficam 12 anos ouvindo aulas, entram na faculdade e ouvem aulas, e vão dar aulas. Podem até ouvir falar dos Piagets da vida, mas os estágios são feitos em escolas tradicionais, onde estão excelentes professores tradicionais que trabalham no paradigma do século XIX ou XVIII.

Notícias Magazine: Portugal habituou-se a olhar para os exemplos educativos da Europa do Norte. É tempo de olhar para outros lados?
José Pacheco: Portugal não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Elas estão aqui dentro. Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky, Piaget? Onde estão os portugueses? Nunca vi Agostinho da Silva numa sala de aula. A Finlândia extinguiu a Inspeção de Ensio e os exames, mas esqueçam a Finlândia. Prestem atenção ao que se passa nos colégios jesuítas da Catalunha. A Europa do Norte e os Estados Unidos são pródigos na divulgação de absurdos e a última "inovação" veiculada pela mídia foi a da aula invertida. O que vem a ser isso? Nas palavras do seu "criador", flipped classroom, ou sala de aula invertida, é o nome que se dá ao método que inverte a lógica de organização da sala de aula. Os alunos aprendem o conteúdo no aconchego dos seus lares, digerindo videoaulas e jogos. Na sala de aula, fazem exercícios. A mídia especializada nos diz que o trabalho de pares foi inventado há cerca de 20 anos. Vinte anos? Há quase um século, o Vygotsky dizia que a aprendizagem é resultante de um processo interativo. Também sabemos que, há mais de 30 anos, o Papert escreveu sobre o assunto. E que, há cerca de 40 anos, o trabalho de pares era prática comum no cotidiano de uma escolinha de Portugal, muito antes de um professor de física o ter "inventado". Os professores portugueses deveriam procurar caminhos de alforria científica e a sua maioridade educacional, sem prescindir do que venha do estrangeiro. Novidades importadas não passam de inovações requentadas.

Notícias Magazine: Acredita numa nova construção social de aprendizagem. O que é que isso implica?
José Pacheco: Há 40 anos, a Ponte provou a possibilidade de romper com o ciclo vicioso da reprodução, conseguiu que uma maioria de alunos oriundos da pobreza alcançasse a excelência acadêmica e a inclusão social. O essencial será a criação de condições de reelaboração da cultura pessoal e profissional dos educadores. Isso compete a uma formação, que, ainda e infelizmente, peca por defeito. Estou falando de projetos que produzem excelência acadêmica e inclusão social e onde não há organização por idades. Onde as escolas não têm banheiros de alunos separados dos baheiros dos professores, onde os auxiliares de ação educativa ensinam aqueles que sujam a limpar, onde a educação acontece. Onde não há aulas, nem turmas, nem anos, que são dispositivos sem sentido nenhum, sem fundamentação científica. Concebeu-se uma nova construção social de aprendizagem onde todos aprendem e são felizes. Isso é possível.

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José Pacheco nasceu no Porto, é mestre em Educação da Criança pela Universidade do Porto. Em 2004, foi eleito comendador da Ordem da Instrução Pública pelo então Presidente da República Jorge Sampaio. Foi eletricista, estudou engenharia e mudou-se para o ensino. Foi professor primário e universitário. "Quando eu era pequeno, vivia num meio pobre, era (e continuo) estrábico. Por isso, sofria bullying e era excluído. Fui para o ensino por vingança e fiquei na educação por amor". Em Portugal, no meio de uma agenda completamente cheia, tirou alguns momentos para responder a esta entrevista por e-mail.

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