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Publicação : 28 DE SETEMBRO DE 2016

Autor(es) : Flávia Navarro da Silva Lobato

Gaudêncio Frigotto A reforma do ensino médio por meio da Medida Provisória nº 746/2016 é uma agressão frontal à Constituição de 1988 e à Lei de Diretrizes da Educação Nacional, que garantem a universalidade do ensino médio como etapa final de educação básica.

Por Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz)

No dia 23/9, foi publicada a Medida Provisória nº 746/2016, que trata da criação do novo ensino médio. Segundo anunciado pelo presidente da República, Michel Temer, e o ministro da Educação, Mendonça Filho, a medida considera prioritária a aprendizagem do aluno e a manutenção dos jovens na escola, a partir de uma proposta curricular que contemple as necessidades individuais dos estudantes e ofereça oportunidades equivalentes às ofertadas nos principais países. Trata-se da maior mudança ocorrida na educação brasileira nos últimos anos, desde a Lei das Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996).

O anúncio das novas propostas provocou protestos de inúmeros movimentos sociais da educação, que criticam tanto a falta de debate que permeou a reforma, quanto o teor das mudanças – que prioriza uma formação mínima, dual e desigual.

Para debater o tema, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promove, nesta quinta-feira, dia 29/9, um debate com o professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Uerj, Gaudencio Frigotto. Nesta entrevista, ele diz que a reforma do ensino médio por meio da Medida Provisória nº 746/2016 é uma agressão frontal à Constituição de 1988 e à Lei de Diretrizes da Educação Nacional, que garantem a universalidade do ensino médio como etapa final de educação básica.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): A Medida Provisória n. 746 altera a Lei n. 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Trata-se, na verdade, de uma lei dirigida a reformar o ensino médio. Por que esta reforma?
Gaudêncio Frigotto:
O grupo que assumiu o MEC [Ministério da Educação] no atual governo golpista e ilegítimo argumenta que o ensino médio no Brasil é o principal desafio da educação brasileira, com um quadro de estagnação das matrículas, a existência de mais de um milhão de jovens de 15 a 17 anos fora da escola. Apresenta, ainda, um dado de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de que 40,3% desses jovens apresentam a falta de interesse no ensino médio como motivo. Resolve, assim, reformar o ensino médio por meio da Medida Provisória. Antes de se falar de seu conteúdo, é importante destacar a forma autoritária que se releva nesta medida e que tem sido a marca deste governo. Apela-se para o interesse dos jovens como argumento, mas sem qualquer discussão com educadores, famílias e com os próprios estudantes sobre o significado da suposta falta de interesse e suas possíveis soluções. O governo ilegítimo e seus prepostos anunciam que se trata de uma reforma para tornar o ensino médio de horário integral, com base na experiência do estado de Pernambuco, mas não revela que se trata, na verdade, de um fatiamento do ensino médio, com violenta redução de suas finalidades e da formação que deveria ser básica, unitária e comum a todos os estudantes.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): Quais são as principais consequências dessa reforma?
Gaudêncio Frigotto: Como afirmei em um pequeno texto publicado pela Anped [Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação], essa reforma liquida a dura conquista do ensino médio como educação básica universal para a grande maioria de jovens e adultos, cerca de 85% dos que frequentam a escola pública. Uma agressão frontal à Constituição de 1988 e à Lei de Diretrizes da Educação Nacional que garantem a universalidade do ensino médio como etapa final de educação básica.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): Quais as principais alterações apresentadas na MP que o levam a fazer tal afirmação?
Gaudêncio Frigotto: Para início de conversa, a medida impõe que a carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ultrapassar 1.200 horas. Ou seja, fica restrita à, no máximo, metade da carga horária mínima total atualmente prevista para o ensino médio. Trata-se de um ataque frontal ao princípio da universalidade e da unitariedade da formação na educação básica, pois somente 50%, na melhor das hipóteses, corresponderá à formação comum a todos os estudantes. Os outros 50% deverão ser organizados em itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase em uma ou mais das seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e, finalmente, formação técnica e profissional. Desta forma, o ensino médio reduz a formação básica a um mínimo e sonega aos estudantes o direito de ter acesso ao conhecimento em suas mais diversas áreas, o que lhes proporcionaria a compreensão dos fundamentos da realidade produtiva, social, econômica, política, ética e estética da vida, para estreitar sua formação desde muito cedo. Alega-se que isto poderia direcionar os jovens aos seus interesses. Porém, o que a escola faria, na verdade, seria evitar que ele descobrisse e desenvolvesse seus múltiplos interesses e, assim, fizesse escolhas mais conscientes e estruturadas, ao invés de essas serem aligeiradas e restritas. Isto é um crime pois, quando o estudante se der conta de que não pode voltar atrás, quem poderá ser responsabilizado?

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): Um dos argumentos que a mídia mais tem divulgado a favor dessa reforma é que o currículo do ensino médio tem muitas disciplinas. Por exemplo, o estudante seria obrigado a estudar até treze disciplinas em um ano. Isto é, de fato, um problema?
Gaudêncio Frigotto: Repito que o argumento sobre o excesso de disciplinas no currículo esconde o que querem dele retirar – filosofia, sociologia e diminuir a carga de história, geografia etc. Na verdade, um estudante que escolha, por exemplo, o itinerário em ciências da natureza ou a formação técnico-profissional pode nunca mais em sua vida ter acesso a conhecimentos dessas áreas e ter sua leitura de mundo fortemente comprometida. Aliás, essa medida converge totalmente com o Projeto Escola sem Partido e, em conjunto, visam transformar os jovens brasileiros dessa geração em “analfabetos sociais”, como já o são os próprios autores e mentores dessas propostas. Esses, porém, mostram ser, ainda, doutores em prepotência, autoritarismo e segregação social. Sua estreiteza de pensamento e a impossibilidade de entender a realidade por se arrogarem como representantes da classe dominante os fazem incapazes de entender o que significa educação básica.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): É comum ouvirmos também a crítica de que a escola continua sendo muito conteudista e, com isto, ultrapassada e incoerente com as habilidades dos estudantes de hoje, por vezes designados como “nativos digitais”. Faz sentido esse tipo de análise?
Gaudêncio Frigotto: Do meu ponto de vista, trata-se de um argumento medíocre e fetichista que mascara o que realmente torna o aluno resistente à escola; mas não a toda e qualquer escola, menos ainda à experiência formativa de acesso às ciências, às artes, à cultura, à tecnologia. A escola que exclui é a escola degradada em seus espaços, sem laboratórios, sem auditórios de arte e cultura, sem espaços de esporte e lazer e com professores esfacelados em seus tempos trabalhando em duas ou três escolas em três turnos para comporem um salário que não lhes permite ter satisfeitas as suas necessidades básicas levando-os frequentemente ao adoecimento. A medida provisória joga uma cortina de fumaça sobre esta realidade e ainda a agrava. Afinal, da forma como o currículo do ensino médio está sendo proposto, inclusive retirando a obrigatoriedade de artes e de educação física, a escola pode prescindir tranquilamente de laboratórios, teatros, quadras esportivas etc. Além disso, a falta de professores de algumas disciplinas pode vir a ser um parâmetro de definição dos sistemas de ensino sobre qual itinerário oferecer. Este problema ficaria remediado com a total desresponsabilização do poder público com a realização de concursos e efetivação de novos professores.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): Essa reforma seria a prova de que proposta que defendemos e com a qual tentamos contribuir desde a discussão do projeto de LDB nos anos de 1980 – primeiro, como Educação Politécnica, e atualmente com o ensino médio integrado – teria fracassado?
Gaudêncio Frigotto: Absolutamente, não! Primeiramente é preciso dizer que esta reforma não é uma resposta aos anseios da sociedade, mas que revela interesses de frações da classe dominante que seguem, inclusive em co-autoria, intelectuais do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio, da OCDE, dentre outros. Como já afirmei, seus compromissos não são com o direito universal à educação básica, pois a consideram um serviço que tem que se ajustar às demandas do mercado. Este, uma espécie de um deus que define quem merece ser por ele considerado num tempo histórico de desemprego estrutural. O ajuste ou a austeridade que se aplica à classe trabalhadora brasileira, da cidade e do campo, pelas reformas da previdência, reforma trabalhista e congelamento por 20 anos na ampliação do investimento na educação e saúde públicas, tem que chegar à escola pública, espaço onde seus filhos estudam.

A reforma do ensino médio que se quer impor por Medida Provisória segue figurino da década de 1990, quando o MEC era dirigido por Paulo Renato de Souza, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Mas é ainda pior, pelas razões que mencionei. Se antes o foco era separar a educação profissional do ensino médio, agora o que se quer é reduzir o ensino médio e substituir parte da formação geral comum pela formação técnico-profissional. Contra isto bradamos fortemente na discussão do projeto de LDB nos anos de 1980 e defendemos a educação unitária, omnilateral e politécnica.

A reforma de FHC reiterava a dualidade educacional à medida que a educação profissional se consolidava como a alternativa ao ensino superior para a classe trabalhadora. Mas esta, além da dualidade, é minimalista e mais violenta. Pior, tende a ser feita, de fato, pelas escolas públicas onde estão esses mesmos sujeitos. A elite, certamente, resistirá à redução da formação de seus filhos, como o fez no contexto da profissionalização compulsória determinada pela lei 5.692/71, no contexto da ditadura civil-militar.

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, conseguimos revogar o decreto que impunha a reforma de FHC e recolocamos em cena a defesa da formação integrada, do ensino médio integrado que proporcionaria a formação unitária pela integração entre trabalho, ciência e cultura, dimensões estruturantes da vida humana. Passamos a disputar o projeto do ensino médio em seu conteúdo. Hoje, por mais dificuldades que se vivencie na implantação dessa proposta, tem-se um debate profícuo e ações importantes em escolas e sistemas de ensino visando a torná-lo realidade. Assim, quer-se fazer acreditar que esta proposta é ultrapassada, fracassada. Mas tanto não o é, quanto a resistência, do meu ponto de vista, deve ser feita demonstrando suas possibilidades e sua convergência com a educação efetivamente democrática e comprometida com os interesses da classe trabalhadora.

Marise Ramos (EPSJV/Fiocruz): Haveria alguma luz no fim do túnel?
Gaudêncio Frigotto: Sim. A luta social!

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